sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Casou-se com falta de liberdade interna


1. Filomeno (Demandante) conheceu Valentina (Demandada) quando tinha apenas 19 anos de idade, no curso de pedagogia, onde eram colegas de classe. Ela era bem mais velha do que ele, com 23 anos de idade. O namoro começou depois que Filomeno passou no concurso para professores do Estado. O namoro iniciado durou dois meses, sendo muito tranquilo e promissor. Tiveram algumas briguinhas, comuns a todo casal jovem. Valentina era mais experiente porque já tinha namorado outros rapazes antes de conhecer Filomeno. Durante a época do namoro, o futuro casal não se relacionou sexualmente. No dia do noivado aconteceu uma desavença entre as famílias, numa pequena discussão, que posteriormente foi perdoada por ambas as partes. Porém, logo depois se separaram por um ano. Valentina namorou naquele tempo um outro rapaz. Nessa época, Filomeno arranjou um trabalho na Califórnia, ficando ausente de seus familiares por um ano. De lá, telefonou várias vezes para ela, na expectativa de retomarem o namoro. Na volta dele ao Brasil, ficaram noivos e, mediante uma certa pressão da parte dos genitores de Valentina, marcaram a data do matrimônio. Durante o curso de noivos ficou bastante claro que a Demandada não levaria a sério a vida a dois. A mãe dela já havia pedido que eles cassassem apenas no religioso, para facilitar as coisas, se por acaso não desse certo. Filomeno, uma semana antes do matrimônio, diz que ficou com muita dúvida. Até sugeriu a desistência. Porém, como a festa estava programada, sendo paga pela mãe de Valentina, não tiveram outra saída. No dia do enlace, ela tomou cinco copos de champanhe. Parecia estar robotizada. Filomeno presenciou tudo como se fosse um teatro. No seu íntimo, a sua vontade era de não se casar, mas como a pressão de Valentina e de seus familiares era bastante, resolveu então dar o seu sim, numa vontade meio confusa entre o sim e o não. Terminada a festa, foram para a casa dos genitores de Valentina. Filomeno teve que dormir no escritório, porque não havia espaço para o casal, que já dormiu em camas separadas desde a primeira noite de núpcias. No dia seguinte, Valentina levantou grogue e somente à noite, voltou em si do porre que havia tomado. Os primeiros dias de casados foram péssimos. Nas afirmações do Demandante, o matrimônio não foi consumado, porque Filomeno não tinha prática nisso e Valentina lhe causava constantes bloqueios. Nove dias depois, Valentina levou o seu esposo até a rodoviária e lhe declarou que só se casou com ele porque a sua família insistia, mas que na verdade nunca o amou de verdade. Filomeno tentou a reconciliação, mas em vão. Não tiveram filhos, porque não se sentiam seguros disso e além do mais, havia dificuldade de atingir o coito, devido às resistências de Valentina. Em resumo, o matrimônio não chegou a durar dez dias.

2. Arrependido, Filomeno entrou dois anos mais tarde com o pedido de nulidade de seu matrimônio. O Tribunal Eclesiástico acolheu o seu súplice libelo e determinou a fórmula de dúvidas, nos seguintes termos:
1) Por grave falta de discrição de juízo (liberdade interna) por parte do Demandante (can. 1095, 2º);
2) Por simulação total por parte da Demandada (can. 1101, § 2).

3. O Código de Direito Canônico, bem como a jurisprudência cristalizada durante muitos séculos na história da Igreja, enfatiza que a pessoa humana, ao assumir um compromisso de tal envergadura, como é o caso do matrimônio, deveria ter presente a sua decisão qualificada e as suas conseqüências. Nessa perspectiva, entra a necessária discrição de juízo das partes contraentes:
Por ser el matrimonio un consorcio de toda la vida, la persona que lo contrae se compromete prácticamente en todos los planos de su personalidad, de futuro y de forma permanente; por lo que su decisión total y radical, que transforma su vida y compromete su futuro, ha de ser una decisión cualificada. Exige, pues, el matrimonio un grado de conocimiento, de voluntad y libertad superiores a los que se exige para otros actos de la vida humana, es decir, una aptitud psicológica proporcionada a la naturaleza y trascendencia del mismo. Para la existencia de la discreción de juicio non basta lo que se llama conocimiento especulativo y teórico de lo que es el matrimonio, sino que se exige lo que se llama facultad crítica, aunque tampoco se exige una discreción máxima, es decir, una ponderación de todo el valor ético, religioso, social, jurídico y económico del matrimonio”(c. ALFAGEME SÁNCHEZ, Tribunal del Obispado de Zamora, 2 mayo 1996, in: Decisiones y sentencias de Tribunales Eclesiásticos españoles sobre el can. 1095, 2° e 3° (II), Salamanca, 1999, p. 66).

4. A discrição do juízo compreende as faculdades intelectivas que possibilitem ao sujeito, emitir o seu consentimento. Esse ato, sendo livre e consciente, sobretudo em base à experiência vital, deve levar em conta a natureza do matrimônio e de suas inerentes exigências. Por consequência, não é um juízo abstrato, mas embasado numa situação concreta de sua vida, onde ele possa deliberar, emitir um juízo e, por conseguinte, escolher. Depois de tudo ponderado, se isso for claro e distinto em sua decisão, então poderá assumir o matrimônio com as suas obrigações e finalidades que lhe são inerentes (cf. c. BURKE, sentença, 07/11/91, in: SRRD, vol. LXXXIII, p. 708). Portanto, não é o grau superior de estudos que a pessoa possui, mas a faculdade crítica que a capacita a emitir um ponderado juízo no momento decisivo do casamento, bem como sobre as futuras conseqüências do enlace assumido perante Deus e a comunidade.

5. A simulação, por sua vez, acontece quando as partes que contraem o matrimônio são viciadas pelo ato positivo da vontade que exclui o matrimônio por si mesmo ou uma de suas propriedades essenciais:
Ahora bien, este acto positivo de la voluntad excluyente, el matrimonio mismo o una parte de sus propiedades esenciales, puede ser claramente explícito o más bien implícito. En este último caso habrá de conocerse por ciertos hechos o datos de los que se desprenda la presunción más o menos violenta de la referida exclusión. Al ser el acto de la voluntad un acto interno, se habrá de acudir a estas presunciones que brotan de hechos y circunstancias, en sí ciertamente constatables”(c. SUBIRÁ GARCÍA, Tribunal del Arzobispado de Valencia, 25/04/1988, in: Jurisprudencia matrimonial de los Tribunales Eclesiásticos españoles, Salamanca, 1991, p. 357).

6. A simulação do consentimento é um ato deliberado da vontade, quando o consentimento é feito com fingimento, ou seja, quando a vontade interior da pessoa não corresponde às palavras pronunciadas por ela. Nesse caso, o consentimento é viciado e rende inválido o matrimônio. Juridicamente, se presume que as palavras pronunciadas sejam em conformidade com a vontade deliberada da pessoa. Por isso, toda e qualquer deformação deve ser provada. Até que não apareçam provas em contrário, o matrimônio goza do seu direito em si mesmo (favor iuris). Papel importante nesse tocante exercem as testemunhas, com o seu parecer a favor ou contra a nulidade de tal matrimônio.

7. A simulação pode ser parcial ou total. É parcial, quando uma pessoa deseja contrair o matrimônio segundo o seu livre modo de pensar e não segundo as exigências teológico-jurídicas do matrimônio em si mesmo. Pode ser de uma parte ou das duas, combinados previamente. É total, quando a vontade deliberada da pessoa não pretende contrair o matrimônio com nenhuma pessoa, com uma determinada pessoa ou quando não pretende contrair um matrimônio que seja para toda a vida. Nesse caso, a sua verdadeira intenção era uma simples união de fato, ou uma mera convivência de amizade, ou um matrimônio temporário, ou um matrimônio que tende por si mesmo ao divórcio, ou um matrimônio ad experimentum.

8. De acordo com o caso em tela, a tendência imediata é de afirmar que a Demandada, de fato, fez um teatro, orquestrado pelos seus familiares, vindo a simular o matrimônio. Contudo, na contestação da lide, que ela apresentou por escrito, se percebe de imediato que os fatos não ficam assim tão claros, vindo inclusive a serem confirmados pelas várias testemunhas arroladas e entrevistadas. Através dos depoimentos, percebemos que a Demandada, apesar de ter ingerido alguns medicamentos antiestresse na véspera das núpcias e depois ter se embriagado, nem por isso se pode afirmar que ela tenha simulado o seu consentimento. Apesar dela sofrer uma certa pressão de seus familiares, ela queria se casar com o Demandante. Ela poderia ter dito não, mas não o fez.

9. O Demandante e uma testemunha arrolada, em base ao que ouviu dele, afirma que o matrimônio não foi consumado. Porém, em base à dificuldade de atestar o fato apenas em afirmações de algo muito íntimo do casal, que somado aos depoimentos da Demandada e da maioria das testemunhas, não se constitui em base sólida para afirmar a certeza moral sobre a inconsumação ou não desse enlace.

10. Em relação à grave falta de discrição de juízo do Demandante, se percebe nos autos algumas afirmações a favor da certeza moral a ser proferida. Destacam-se a seguintes falas escritas:
Manifestou sérias dúvidas sobre a vontade de casar-se, sobre a indissolubilidade do matrimônio e as demais condições essenciais para o mesmo. Queixou-se do comportamento agressivo e apático da noiva em relação a ele... Duvidou seriamente dos sentimentos de sua noiva para com ele... Perguntado se não seria melhor desistir do casamento, ele alegou receio de futuras ações judiciais movidas pela família da noiva”(mãe de Filomeno). “O Demandante não me parecia ter práticas maduras e ser maduro psicologicamente e emocionalmente no início de nosso namoro... o Demandante estava sobre pressão de sua família... não estava preparado...”(sogra de Filomeno). “Na realidade nós não tomamos decisões em conjunto sobre a vida futura, as decisões estavam postas pela família da Demandada... Eu me senti obrigado ao matrimônio, pelas ameaças sofrida e antes relatadas... Eu não tinha certeza de que o casamento iria acontecer”(o próprio Filomeno). “Eles não tomavam decisões juntos, as decisões já estavam tomadas quando chegavam ao Demandante... No meu entender, o Demandante se tornou dependente afetivo da Demandada, ... Ele não tinha certeza que o casamento iria dar certo”(irmão de Valentina). “A meu ver, o demandante não estava em condições para expressar seu livre consentimento, a paixão e a cegueira pela demandada, não o permitiam ver a tristeza em que estava vivendo, ele não estava preparado para esse matrimônio”(amigo de Filomeno). “A demandada parecia estar em condições física e psicológica para manifestar livremente o seu consentimento... No tocante ao demandante, eu creio que não, pela experiência e pela conversa... não tinha convicção, se apresentava com medo para realizar o matrimônio”(pai de Valentina).

11. Em base às afirmações supracitadas, os juízes tiveram dificuldade para proferir a certeza moral em prol da simulação de Valentina, porque lhe faltou uma motivação identificadora de tal atitude. Ela estava interessada em concretizar o casamento. Por outro lado, os juízes percebem nos autos do processo um quadro bastante complexo, onde uma parte mais madura que a outra, teria se deixado levar pelos interesses de seus familiares, na hora de sua decisão. Portanto, fica difícil identificar nisso uma atitude simulatória de sua parte.

12. Apesar do quadro não favorável já na época do namoro e noivado, das circunstâncias imediatas no momento da celebração, as partes se decidem por assumir um matrimônio que nunca se materializará pela absoluta falta de convivência, mesmo física, desde o primeiro dia e que durou menos de 10 dias.

13. Embora Filomeno quisesse se casar com Valentina, as partes nunca se entenderam ao longo de todo o namoro e noivado. Os dias anteriores à celebração do matrimônio foram determinantes. O Demandante vai para o matrimônio não sabendo se o mesmo se realizaria. Estava confuso, não conseguindo perceber o que estava acontecendo. Não tinha a capacidade de ponderar e avaliar o passo que estava assumindo. Sua liberdade interna estava prejudicada, pois, embora tivesse quase a certeza que a Demandada não se casaria, tinha medo de suas consequências jurídicas, pois a Demandada poderia colocar contra ele algum tipo de processo por danos morais.

14. Tudo ponderado, após a invocação do Espírito do Senhor, os juízes do Tribunal Eclesiástico, chegaram à seguinte conclusão diante dos capítulos invocados:

1) Por grave falta de discrição de juízo (liberdade interna) por parte do Demandante (can. 1095, 2º): AFIRMATIVAMENTE.

2) Por simulação total por parte da Demandada (can. 1101, § 2): NEGATIVAMENTE.

A sentença afirmativa, proferida em Primeira Instância foi homologada, dois meses depois, pela Segunda Instância, declarando assim que as partes estão livres para contrair novas núpcias na Igreja, na esperança de que agora estejam mais conscientes e maduras para uma segunda chance.

Nenhum comentário: