Tereza é católica, batizada e crismada na Igreja católica. Convive com o marido há uns 15 anos, mas ele não vê sentido em se casar nem no civil e nem no religioso. Numa conversa com seu orientador espiritual, Tereza teria recebido autorização para comungar na Igreja. Porém, na medida em que se aproximava da Eucaristia, pessoas da comunidade a miravam com um olhar reprovador. Foram falar com o pároco, afirmando que se ela vive em união irregular, não poderia comungar na Igreja. O pároco a procurou para uma conversa. Tereza entendeu que até poderia solicitar um decreto do Bispo, para liberá-la para a comunhão. Mas o pároco não teve certeza na hora do encaminhamento, se isso seria possível sem ela ser casada no civil?
1. O presente caso mexe com o Direito Canônico, configurando-se na sanatio in radice (sanação radical), de acordo com os cânones 1161 a 1165.
2. A sanação radical é um recurso do direito, usado sobretudo para sanar ou remediar um matrimônio nulo, sem a necessária renovação do consentimento pelos contraentes. A sanação traz no bojo a dispensa de um impedimento, se houver, ou a dispensa da forma canônica (can. 1161, § 1). É uma graça concedida pela autoridade competente da Igreja, que convalida o matrimônio desde a sua origem (can. 1161, § 2). Releva-se que não é a sanação que cria o vínculo matrimonial, mas o consentimento das partes. A sanação é um remédio para melhorar a seqüência da vida matrimonial, de acordo com o consentimento já efetivado pelas partes desde as suas origens. É indispensável, porém, que haja a intenção das partes de perseverar na vida conjugal (1161, § 3). Caso contrário, não se aplica esse recurso, porque a sua eficácia seria falida por si mesma. Exemplo: não seria possível legitimar um casamento civil que se encontra em vias de separação ou de divórcio, mesmo que seja solicitada a sua sanação radical.
3. A sanação, segundo atesta a história da Igreja, foi um recurso usado até em situações gerais pela Igreja, para remediar muitos casos de matrimônios nulos desde a sua origem (cf. A. B. CANTÓN, Comentario (can. 1165), in: Comentario exegético al Código de Derecho Canónico, vol. III/2, p. 1635):
1) A sanação concedida por Júlio III na Inglaterra em 1554, para facilitar o retorno dos casados à Igreja católica;
2) A sanação concedida por Clemente VIII em 1595, para os matrimônios dos gregos, contraídos com o impedimento da consangüinidade de quarto grau;
3) A sanação concedida por Pio VII em 1809, para os matrimônios civis contraídos durante a revolução francesa;
4) A sanação concedida por Pio X, declarando válidos os matrimônios contraídos na Alemanha até abril de 1906.
4. A sanação aplica-se aos casos de matrimônios que têm um defeito na raiz de sua origem. Os defeitos mais comuns são:
1) Um impedimento dirimente. Ex. matrimônio entre consanguíneos;
2) Um matrimônio realizado com defeito de forma. Ex. matrimônio assistido pelo ministro ordenado ou pela testemunha qualificada, sem a delegação do pároco;
3) Um vício inicial de consentimento. Ex. incapacidade psíquica de uma das partes, porém sanada posteriormente;
4) Um casamento celebrado somente no civil;
5) Se uma das partes se nega ao matrimônio na Igreja;
6) Se já houve a celebração religiosa em outra denominação cristã (mista religião). Ex. matrimônio de uma parte católica com outra da Assembléia de Deus.
5. Os efeitos da sanação não acontecem a partir do momento em que a mesma é concedida, mas a partir do consentimento dado pelas partes. Ex. se o casamento civil entre A e B aconteceu em 1990 e a sanação foi solicitada em 2012, tal matrimônio com esse recurso, torna-se válido naquele ano e não na atualidade. Portanto, os efeitos da sanação são retroativos à data do consentimento proferido pelas partes, desde que o mesmo perdure (can. 1161, § 3).
6. A solicitação da sanação pode ser feita diretamente pelas partes interessadas ou por intermédio de outra pessoa. A autoridade competente da Igreja a conceder o decreto da sanação é a Sé Apostólica ou o Bispo diocesano (can. 1165). Os casos mais comuns são concedidos Bispo diocesano, desde que não haja um impedimento reservado à Sé Apostólica.
7. Diante do exposto, nos perguntamos, se seria possível a sanação na raiz para as uniões de fato (entre um homem e uma mulher), que não se casaram no civil?
8. O respeitado italiano - Luigi Chiappetta - sustenta que mesmo nesses casos é possível este recurso, desde que os cônjuges demonstrem “uma sincera vontade de viver em modo estável como marido e mulher” (L. CHIAPPETTA, Il Codice di Diritto Canonico: commento giuridico pastorale, vol. II, p. 428; cf. também: J. CORSO, A importância pastoral da sanatio in radice, in: Direito e Pastoral, 37 [1999], p. 64).
9. A Constituição da República reconhece “a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”. Porém, para ser reconhecida como família, essa união deve ser convertida em casamento (Art. 226, § 3). Para haver a conversão, é preciso que haja o casamento civil, ou o casamento religioso com efeito civil nos termos da lei (cf. Art. 226, §§ 1-2). Contudo, sabemos que basta que união de fato perdure, para que haja expectativa de direito. E pipocam casos na nossa sociedade brasileira, em tais uniões acabam sendo equiparadas ao casamento, sobretudo quando se trata de defesa de seus direitos instaurados na vida a dois.
10. A Igreja católica é muito prudente, ao avaliar estes tipos de uniões. Por isso, dificilmente se consegue o decreto de sanação. Porém, se for comprovado que o consentimento dado em modo natural não foi e não está sendo prejudicado, não vemos motivos para não concedê-lo. É claro que o casamento civil é uma garantia a mais. Contudo, não bastam os papéis, se a prática é ou poderá ser outra!
11. Nos encaminhamentos dados, o pároco ou outra pessoa indicada por ele deve avaliar o pedido, tendo como base as seguintes balizas:
1º) Procurar o pároco ou o seu assistente espiritual e narrar a sua história, em que manifeste os motivos da sanação;
2º) Quem ouve a história, deveria interrogar a parte interessada e, se possível o casal, para que apresentem as justificativas do não casamento no civil;
3º) Se houver um justo motivo pelo não casamento no civil, prosseguir com o caso, elaborando um breve histórico, constando os nomes dos cônjuges, o local e data de nascimento, a data do batismo de ao menos uma parte na Igreja católica e os motivos que norteiam a solicitação. A seguir, emitir um parecer pessoal sobre a perseverança do consentimento natural das partes;
4º) Se uma das partes não concordar no pedido na sanação, agir com prudência, porque pode estar comprometendo a seriedade de tal solicitação e de seus efeitos. Seria ideal consultar a outra parte, para comprovar que isso não motivo de desavença dos cônjuges;
5º) Anexar ao pedido o batistério recente das partes (ao menos da parte católica), bem como um ou mais depoimentos de pessoas que conheçam o casal, afirmando sua perseverança na vida à dois.
12. O decreto da sanação é comunicado à paróquia onde as partes foram batizadas, para ser transcrito no livro de batismos. Os efeitos da sanação são os mesmos do matrimônio na Igreja. Isso significa que ambos os cônjuges estão livres para comungar na Igreja e fazer de tudo para que o seu lar continue sendo uma Igreja doméstica, no cultivo dos valores essenciais da vida a dois e na educação dos frutos oriundos de tal consentimento, sanado em sua raiz.
terça-feira, 28 de agosto de 2012
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Um comentário:
Gostei da sua postagem, mas me responde uma coisa. Um padre diocesano que está em dúvida se quer deixar o sacerdócio para se casar pode pedir uma licença temporária de seu ministério sacerdotal para fazer a experiência da vida a dois e se decidir sobre o casamento ou o sacerdócio? Como faz isso?
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