domingo, 5 de dezembro de 2010

Incardinação e clérigos vagantes


Frei Tibúrcio é sacerdote, religioso, adscrito num instituto de vida consagrada clerical de direito pontifício. Estando em crise, resolveu pedir licença ao seu ordinário (superior) para morar um ano fora. Recebeu esta licença em 2005 e foi aceito para um tempo de experiência na diocese A. Descontente com o clero local e o bispo, sai daquela diocese e entra em 2006 na diocese B. Lá permanece por dois anos, mas na medida em que recebe a transferência para outra paróquia, discorda do bispo e pede para sair. Em meados de 2009, foi aceito na diocese C, mas o bispo está de olho nele, pelo fato de mudar muito de diocese a diocese. Sabendo disso, o seu ordinário de origem (superior religioso) escreve para ele, admoestando-o, tendo em vista a sua continuidade no instituto religioso ou numa diocese. Contudo, surge-lhe a dúvida, se ele poderia ser incardinado numa diocese e qual é o tempo mínimo de experiência?

1. A palavra incardinação vem do latim, cardo, que significa a extremidade pela qual uma ponta de um objeto se encaixa no seu eixo central e da sua dependência para poder girar livremente. Também expressa a avenida principal (cardo maximo), sendo cortada pelas ruas menores (decumanas), como era muito comum nas cidades construídas no império romano.

2. A Igreja herdou esta palavra do vocabulário comum, para expressar a estrutura central que um clérigo depende para bem desempenhar o seu ministério. Deste modo, a incardinação é a inscrição de um fiel de sexo masculino no clero de determinada Igreja particular (diocese), ou numa Prelazia pessoal ou num Instituto Religioso clerical, ou numa Sociedade que tenha faculdade de proceder à incardinação (can. 265-266). A incardinação originária se efetua pela recepção da ordem do Diaconato, ou no caso de um religioso consagrado, pela sua profissão perpétua no instituto. Uma ulterior incardinação em outra circunscrição, somente é possível mediante a excardinação da entidade anterior.

3. A incardinação numa diocese, prelazia ou instituto religioso produz o sentido de pertença àquela porção do povo de Deus. Para tanto, nenhum ordinário local (bispo) ou ordinário religioso (superior) pode proceder a outra incardinação, se o clérigo continua incardinado em sua circunscrição de origem (can. 267, § 1). Assim como não é possível, de acordo com a normativa da Igreja, um homem casar com duas mulheres e vice-versa, a não ser que o matrimônio anterior seja declarado inválido, não existe na estrutura da Igreja a possibilidade de duas incardinações ao mesmo tempo. Enquanto o clérigo não obtiver do seu bispo, prelado, ou superior a excardinação, não pode ao mesmo tempo estar incardinado em outra entidade (can. 267, § 2).

4. O prazo mínimo exigido pelo direito, como tempo de adaptação e conhecimento da nova entidade, é de cinco anos (can. 268, § 1). Porém, devem ser considerados os seguintes requisitos:
1) Que o clérigo manifeste por escrito, externando sua vontade de se incardinar na nova entidade, colocando os devidos motivos e que não regressará à sua entidade de origem;
2) Que tenha permanecido ao menos por cinco anos ininterruptos na nova entidade, sendo aceito pelo novo ordinário;
3) Que haja consenso entre os dois ordinários. Tal consenso pode ser dado no início, no meio ou no fim do quinquênio;
4) Que a residência na nova entidade não tenha sido interrompida ao menos por cinco anos, salvo restando se foi autorizada pelo ordinário que o acolhe por um justo motivo (estudos, enfermidade, férias);
5) Que nenhum ordinário tenha se manifestado contrário, por escrito, no prazo de quatro meses a partir da petição do clérigo.

5. No caso de um clérigo pertencente a um instituto de vida consagrada ou sociedade de vida apostólica, não se concede o indulto, se antes primeiro não tiver um bispo que o incardine na diocese, ao menos que o receba por um tempo de experiência. Se o tempo de experiência se prolongar por cinco anos e o religioso não for recusado pelo bispo, fica pelo próprio direito incardinado na diocese (can. 693).

6. Algumas ponderações a guisa de conclusão:
1) Receber a permissão do superior ou do bispo para fazer uma experiência numa nova diocese é uma graça, considerando, sobretudo, que a Igreja está aberta aos anseios dos clérigos, mesmo que tenham tido um razoável tempo de conhecimento na entidade de origem durante os longos anos de propedêutico, filosofia e teologia;
2) É muito comum acontecer nos dias atuais, a falta de comunicação entre os superiores e bispos, no tocante ao tempo de experiência. Além do mais, soe ocorrer acolhidas em dioceses, pela escassez de clérigos, sem que necessariamente isso se configure numa autorizada passagem. No meu modo de entender, deveria haver sempre uma consulta ao ordinário anterior, evitando-se assim posteriores dissabores;
3) Muitos clérigos demonstram instabilidade, transitando de diocese a diocese, na busca de um espaço para a sua realização pessoal e ministério ao povo de Deus. Mesmo havendo compreensão diante do lado humano do clérigo, quando isso ocorre muitas vezes, se deveria lançar uma interrogação se o problema não é mais pessoal do que institucional. E quando isso cria habitualidade, dificilmente o clérigo encontra o seu espaço ideal, o que resulta muitas vezes no retorno à entidade de origem;
4) Se acaso não se encontrar um bispo que acolha o clérigo, não se pode em hipótese alguma admitir a saída da entidade de origem, uma vez que no cenário da Igreja não pode haver clérigo acéfalo ou vagante (can. 265);
5) O clérigo que sai da entidade de origem não tem direito a ressarcimento ou remuneração pelo tempo de serviço prestado, independente de ser religioso ou secular. Aqui, pode-se aplicar uma dose de caridade fraterna. Contudo, isso não significa pagamento, uma vez que o que norteia o seu verdadeiro interesse não é o indulto de saída da entidade, mas o tempo de experiência e a possível incardinação na nova entidade.

7. Em base ao caso em epígrafe, respondemos que não basta o tempo que se vive fora da entidade A, B ou C, se em cada uma delas a experiência não se prolongar ao menos por cinco anos. Pode ocorrer ainda que após vários períodos curtos, vividos pelo clérigo numa entidade ou outra, resulte em uma ou duas admoestações do superior ao clérigo, para que ele volte à entidade de origem. Se o clérigo não concordar, se pode proceder ao processo de demissão, sobretudo se for religioso, de acordo com a normativa dos cânones 696 a 698.