sábado, 21 de novembro de 2009

Passagem de uma Congregação à outra


Uma Irmã de uma Congregação Franciscana, com votos perpétuos, encaminhou o pedido para fazer experiência de vida contemplativa e optou por uma Congregação Beneditina. O Conselho Geral da Congregação Franciscana, com sede na Itália, autorizou esta experiência, de acordo com os seguintes termos:
O Conselho Geral das Irmãs Franciscanas encaminha ao Conselho Regional das Irmãs no Brasil a licença para Irmã Benedita fazer uma experiência de vida Contemplativa, de até 8 (oito) meses, na Congregação Beneditina das Irmãs do Silêncio Perpétuo, situada no Estado de São Paulo, visto a referida Irmã afirmar que se sente chamada por Deus para este estilo diferente de vida consagrada. A Irmã Benedita tomou a decisão de fazer uma experiência de vida contemplativa após um período de 02 ( dois) anos de orientação espiritual e discernimento. Acompanhamos Irmã com nossas orações”.

1. Irmã Benedita permaneceu na Congregação acima citada desde o dia 22 de agosto do presente ano. Agora, no dia 22 de novembro, completam-se os 3 meses de experiência. A Irmã deseja fazer o tempo de provação que tem a duração de até 3 anos e assim melhor se conhecer e poder decidir por permanecer definitivamente na Congregação de vida Contemplativa ou voltar para a Congregação de origem. Resta-nos uma dúvida e sobre ela solicito uma orientação, em nome também da nossa Superiora Geral. Para a Irmã iniciar este tempo de provação, mesmo não se desligando ainda da nossa Congregação, necessita de alguma autorização especial ou basta a da Superiora Geral? E no caso dela se decidir por permanecer na vida contemplativa, quais providências são da nossa competência?

2. Diga-se de passagem que o Direito da Igreja não é uma camisa de força, onde as pessoas se amarram dentro dele, sem saída, mas um ordenamento de normas e preceitos, que servem de balizas para bem conduzir a vida dos fiéis cristãos, sejam eles leigos, religiosos ou clérigos. Também serve para melhor organizar a vida de toda e qualquer organização ou circunscrição eclesiástica.

3. Os Institutos de Vida Consagrada, comumente são denominados como neste caso, de Congregações, além de serem norteados pelo Código de Direito Canônico, seguem um ordenamento próprio (Regra, Constituições, Diretórios, Regimentos).

4. Outra questão de fundo, antes de proceder ao encaminhamento da questão em tela, é se esta Irmã, uma vez que emitiu a sua profissão perpétua nesta Congregação, teria direito de agora sair ou passar para outra Congregação?

5. O tempo de formação inicial dentro de uma Congregação, apesar de ser vasto e bem estruturado, nem sempre garante que a pessoa que emite a sua profissão perpétua, seja para toda a vida. Diante disso, o Supremo Legislador, em base à história e à jurisprudência consolidada ao longo dos séculos, resolveu por bem deixar uma brecha em aberto, para que os membros que não se sentissem de todo seguros em sua profissão emitida, pudessem passar para outro instituto religioso, como veremos abaixo.

6. As Constituições da referida Congregação, dizem que: “Para a transferência de uma Irmã com Votos Perpétuos para outra Congregação, valem os cânones 684 e 685”.

7. O Código de Direito Canônico prevê os seguintes critérios para que esta passagem aconteça:
1) Somente é possível a passagem de um membro de votos perpétuos, do próprio instituto religioso para outro, com a concessão dos Moderadores supremos de ambos os institutos, com o consentimento dos respectivos conselhos (can. 684, § 1);
2) O membro deverá fazer um tempo de prova de ao menos três anos no novo instituto, para que assim esteja habilitado à profissão perpétua naquele instituto. E se ele por acaso se negar a emitir tal profissão, cessa o seu tempo hábil, devendo retornar ao instituto de origem, ou se for de sua vontade, que obtenha o indulto de secularização (can. 684, § 2);
3) O direito próprio do instituto deve determinar o tempo e o modo de provação, que deve preceder à profissão no novo instituto (can. 684, § 4);
4) Os votos da religiosa permanecem válidos até a emissão da profissão perpétua no outro instituto. Porém, suspendem-se os direitos e obrigações provenientes do instituto anterior desde o início da nova prova, estando a religiosa obrigada à observância do direito próprio no novo instituto (can. 685, § 1);
5) Com a profissão perpétua no novo instituto acontece a incorporação ao mesmo, cessando-se os votos, direitos e obrigações precedentes (can. 685, § 2).

8. Diante do exposto, eis alguns encaminhamentos:
1) A Irmã que demanda a questão ainda está dentro do seu devido prazo, conforme a licença recebida, que era de oito meses. Contudo, se a sua decisão é madura, então pode ela solicitar dos devidos Moderadores supremos a passagem, ou permanecer ainda no prazo que lhe fora garantido, ou seja, ela teria mais cinco meses para dar o seu sim, ou em favor da passagem, ou em favor do retorno à casa religiosa da Congregação;
2) A motivada súplica deve ser dirigida à Moderadora suprema da Congregação, que equivale aqui à Superiora Geral. Ela, por sua vez, solicitará à Moderadora suprema da outra Congregação, que acolha a Irmã para o devido tempo de provação. Ambas as permissões devem ser acompanhadas pelos consentimentos dos respectivos conselhos (can. 684, § 1). Caso contrário, o ato é nulo por si mesmo. Deduz-se do enunciado que bastam os contatos oficiais entre as duas Moderadoras, sem necessidade de outros procedimentos da Superiora provincial, regional ou local. Em resumo, é a Irmã que deve escrever à Moderadora suprema, sem necessidade de intermediação de outra autoridade local;
3) O tempo de provação decorre a partir da data da solicitação e da aceitação. Os critérios a serem observados no tempo de provação são determinados pela Superiora Geral da Congregação que a recebe, de acordo com o seu direito próprio. Para que a nova profissão perpétua seja emitida, este tempo não deve superar três anos;
4) Se porventura a Irmã quiser voltar atrás, à sua Congregação de origem, isso deve ocorrer no prazo de três anos. Isso é um direito seu, sem necessidade de emitir novamente a profissão perpétua, porque continua válida a sua profissão emitida anteriormente, que só perderá a sua validade, caso ela emita nova profissão no Instituto que a recebe. E se ainda ocorrer a hipótese de um dia ela voltar para a Congregação de origem, após ter feito a profissão perpétua na outra Congregação, terá ela que passar outro tempo de provação, a ser determinado pela sua Superiora Geral, acordo com a normativa do cânon 690, porque equivale à saída definitiva da Congregação.

Que Deus ilumine os passos da Irmã e das duas Congregações, para ela encontre o seu verdadeiro caminho de realização pessoal, fraterno e comunitário!

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Casou-se com falta de liberdade interna


1. Filomeno (Demandante) conheceu Valentina (Demandada) quando tinha apenas 19 anos de idade, no curso de pedagogia, onde eram colegas de classe. Ela era bem mais velha do que ele, com 23 anos de idade. O namoro começou depois que Filomeno passou no concurso para professores do Estado. O namoro iniciado durou dois meses, sendo muito tranquilo e promissor. Tiveram algumas briguinhas, comuns a todo casal jovem. Valentina era mais experiente porque já tinha namorado outros rapazes antes de conhecer Filomeno. Durante a época do namoro, o futuro casal não se relacionou sexualmente. No dia do noivado aconteceu uma desavença entre as famílias, numa pequena discussão, que posteriormente foi perdoada por ambas as partes. Porém, logo depois se separaram por um ano. Valentina namorou naquele tempo um outro rapaz. Nessa época, Filomeno arranjou um trabalho na Califórnia, ficando ausente de seus familiares por um ano. De lá, telefonou várias vezes para ela, na expectativa de retomarem o namoro. Na volta dele ao Brasil, ficaram noivos e, mediante uma certa pressão da parte dos genitores de Valentina, marcaram a data do matrimônio. Durante o curso de noivos ficou bastante claro que a Demandada não levaria a sério a vida a dois. A mãe dela já havia pedido que eles cassassem apenas no religioso, para facilitar as coisas, se por acaso não desse certo. Filomeno, uma semana antes do matrimônio, diz que ficou com muita dúvida. Até sugeriu a desistência. Porém, como a festa estava programada, sendo paga pela mãe de Valentina, não tiveram outra saída. No dia do enlace, ela tomou cinco copos de champanhe. Parecia estar robotizada. Filomeno presenciou tudo como se fosse um teatro. No seu íntimo, a sua vontade era de não se casar, mas como a pressão de Valentina e de seus familiares era bastante, resolveu então dar o seu sim, numa vontade meio confusa entre o sim e o não. Terminada a festa, foram para a casa dos genitores de Valentina. Filomeno teve que dormir no escritório, porque não havia espaço para o casal, que já dormiu em camas separadas desde a primeira noite de núpcias. No dia seguinte, Valentina levantou grogue e somente à noite, voltou em si do porre que havia tomado. Os primeiros dias de casados foram péssimos. Nas afirmações do Demandante, o matrimônio não foi consumado, porque Filomeno não tinha prática nisso e Valentina lhe causava constantes bloqueios. Nove dias depois, Valentina levou o seu esposo até a rodoviária e lhe declarou que só se casou com ele porque a sua família insistia, mas que na verdade nunca o amou de verdade. Filomeno tentou a reconciliação, mas em vão. Não tiveram filhos, porque não se sentiam seguros disso e além do mais, havia dificuldade de atingir o coito, devido às resistências de Valentina. Em resumo, o matrimônio não chegou a durar dez dias.

2. Arrependido, Filomeno entrou dois anos mais tarde com o pedido de nulidade de seu matrimônio. O Tribunal Eclesiástico acolheu o seu súplice libelo e determinou a fórmula de dúvidas, nos seguintes termos:
1) Por grave falta de discrição de juízo (liberdade interna) por parte do Demandante (can. 1095, 2º);
2) Por simulação total por parte da Demandada (can. 1101, § 2).

3. O Código de Direito Canônico, bem como a jurisprudência cristalizada durante muitos séculos na história da Igreja, enfatiza que a pessoa humana, ao assumir um compromisso de tal envergadura, como é o caso do matrimônio, deveria ter presente a sua decisão qualificada e as suas conseqüências. Nessa perspectiva, entra a necessária discrição de juízo das partes contraentes:
Por ser el matrimonio un consorcio de toda la vida, la persona que lo contrae se compromete prácticamente en todos los planos de su personalidad, de futuro y de forma permanente; por lo que su decisión total y radical, que transforma su vida y compromete su futuro, ha de ser una decisión cualificada. Exige, pues, el matrimonio un grado de conocimiento, de voluntad y libertad superiores a los que se exige para otros actos de la vida humana, es decir, una aptitud psicológica proporcionada a la naturaleza y trascendencia del mismo. Para la existencia de la discreción de juicio non basta lo que se llama conocimiento especulativo y teórico de lo que es el matrimonio, sino que se exige lo que se llama facultad crítica, aunque tampoco se exige una discreción máxima, es decir, una ponderación de todo el valor ético, religioso, social, jurídico y económico del matrimonio”(c. ALFAGEME SÁNCHEZ, Tribunal del Obispado de Zamora, 2 mayo 1996, in: Decisiones y sentencias de Tribunales Eclesiásticos españoles sobre el can. 1095, 2° e 3° (II), Salamanca, 1999, p. 66).

4. A discrição do juízo compreende as faculdades intelectivas que possibilitem ao sujeito, emitir o seu consentimento. Esse ato, sendo livre e consciente, sobretudo em base à experiência vital, deve levar em conta a natureza do matrimônio e de suas inerentes exigências. Por consequência, não é um juízo abstrato, mas embasado numa situação concreta de sua vida, onde ele possa deliberar, emitir um juízo e, por conseguinte, escolher. Depois de tudo ponderado, se isso for claro e distinto em sua decisão, então poderá assumir o matrimônio com as suas obrigações e finalidades que lhe são inerentes (cf. c. BURKE, sentença, 07/11/91, in: SRRD, vol. LXXXIII, p. 708). Portanto, não é o grau superior de estudos que a pessoa possui, mas a faculdade crítica que a capacita a emitir um ponderado juízo no momento decisivo do casamento, bem como sobre as futuras conseqüências do enlace assumido perante Deus e a comunidade.

5. A simulação, por sua vez, acontece quando as partes que contraem o matrimônio são viciadas pelo ato positivo da vontade que exclui o matrimônio por si mesmo ou uma de suas propriedades essenciais:
Ahora bien, este acto positivo de la voluntad excluyente, el matrimonio mismo o una parte de sus propiedades esenciales, puede ser claramente explícito o más bien implícito. En este último caso habrá de conocerse por ciertos hechos o datos de los que se desprenda la presunción más o menos violenta de la referida exclusión. Al ser el acto de la voluntad un acto interno, se habrá de acudir a estas presunciones que brotan de hechos y circunstancias, en sí ciertamente constatables”(c. SUBIRÁ GARCÍA, Tribunal del Arzobispado de Valencia, 25/04/1988, in: Jurisprudencia matrimonial de los Tribunales Eclesiásticos españoles, Salamanca, 1991, p. 357).

6. A simulação do consentimento é um ato deliberado da vontade, quando o consentimento é feito com fingimento, ou seja, quando a vontade interior da pessoa não corresponde às palavras pronunciadas por ela. Nesse caso, o consentimento é viciado e rende inválido o matrimônio. Juridicamente, se presume que as palavras pronunciadas sejam em conformidade com a vontade deliberada da pessoa. Por isso, toda e qualquer deformação deve ser provada. Até que não apareçam provas em contrário, o matrimônio goza do seu direito em si mesmo (favor iuris). Papel importante nesse tocante exercem as testemunhas, com o seu parecer a favor ou contra a nulidade de tal matrimônio.

7. A simulação pode ser parcial ou total. É parcial, quando uma pessoa deseja contrair o matrimônio segundo o seu livre modo de pensar e não segundo as exigências teológico-jurídicas do matrimônio em si mesmo. Pode ser de uma parte ou das duas, combinados previamente. É total, quando a vontade deliberada da pessoa não pretende contrair o matrimônio com nenhuma pessoa, com uma determinada pessoa ou quando não pretende contrair um matrimônio que seja para toda a vida. Nesse caso, a sua verdadeira intenção era uma simples união de fato, ou uma mera convivência de amizade, ou um matrimônio temporário, ou um matrimônio que tende por si mesmo ao divórcio, ou um matrimônio ad experimentum.

8. De acordo com o caso em tela, a tendência imediata é de afirmar que a Demandada, de fato, fez um teatro, orquestrado pelos seus familiares, vindo a simular o matrimônio. Contudo, na contestação da lide, que ela apresentou por escrito, se percebe de imediato que os fatos não ficam assim tão claros, vindo inclusive a serem confirmados pelas várias testemunhas arroladas e entrevistadas. Através dos depoimentos, percebemos que a Demandada, apesar de ter ingerido alguns medicamentos antiestresse na véspera das núpcias e depois ter se embriagado, nem por isso se pode afirmar que ela tenha simulado o seu consentimento. Apesar dela sofrer uma certa pressão de seus familiares, ela queria se casar com o Demandante. Ela poderia ter dito não, mas não o fez.

9. O Demandante e uma testemunha arrolada, em base ao que ouviu dele, afirma que o matrimônio não foi consumado. Porém, em base à dificuldade de atestar o fato apenas em afirmações de algo muito íntimo do casal, que somado aos depoimentos da Demandada e da maioria das testemunhas, não se constitui em base sólida para afirmar a certeza moral sobre a inconsumação ou não desse enlace.

10. Em relação à grave falta de discrição de juízo do Demandante, se percebe nos autos algumas afirmações a favor da certeza moral a ser proferida. Destacam-se a seguintes falas escritas:
Manifestou sérias dúvidas sobre a vontade de casar-se, sobre a indissolubilidade do matrimônio e as demais condições essenciais para o mesmo. Queixou-se do comportamento agressivo e apático da noiva em relação a ele... Duvidou seriamente dos sentimentos de sua noiva para com ele... Perguntado se não seria melhor desistir do casamento, ele alegou receio de futuras ações judiciais movidas pela família da noiva”(mãe de Filomeno). “O Demandante não me parecia ter práticas maduras e ser maduro psicologicamente e emocionalmente no início de nosso namoro... o Demandante estava sobre pressão de sua família... não estava preparado...”(sogra de Filomeno). “Na realidade nós não tomamos decisões em conjunto sobre a vida futura, as decisões estavam postas pela família da Demandada... Eu me senti obrigado ao matrimônio, pelas ameaças sofrida e antes relatadas... Eu não tinha certeza de que o casamento iria acontecer”(o próprio Filomeno). “Eles não tomavam decisões juntos, as decisões já estavam tomadas quando chegavam ao Demandante... No meu entender, o Demandante se tornou dependente afetivo da Demandada, ... Ele não tinha certeza que o casamento iria dar certo”(irmão de Valentina). “A meu ver, o demandante não estava em condições para expressar seu livre consentimento, a paixão e a cegueira pela demandada, não o permitiam ver a tristeza em que estava vivendo, ele não estava preparado para esse matrimônio”(amigo de Filomeno). “A demandada parecia estar em condições física e psicológica para manifestar livremente o seu consentimento... No tocante ao demandante, eu creio que não, pela experiência e pela conversa... não tinha convicção, se apresentava com medo para realizar o matrimônio”(pai de Valentina).

11. Em base às afirmações supracitadas, os juízes tiveram dificuldade para proferir a certeza moral em prol da simulação de Valentina, porque lhe faltou uma motivação identificadora de tal atitude. Ela estava interessada em concretizar o casamento. Por outro lado, os juízes percebem nos autos do processo um quadro bastante complexo, onde uma parte mais madura que a outra, teria se deixado levar pelos interesses de seus familiares, na hora de sua decisão. Portanto, fica difícil identificar nisso uma atitude simulatória de sua parte.

12. Apesar do quadro não favorável já na época do namoro e noivado, das circunstâncias imediatas no momento da celebração, as partes se decidem por assumir um matrimônio que nunca se materializará pela absoluta falta de convivência, mesmo física, desde o primeiro dia e que durou menos de 10 dias.

13. Embora Filomeno quisesse se casar com Valentina, as partes nunca se entenderam ao longo de todo o namoro e noivado. Os dias anteriores à celebração do matrimônio foram determinantes. O Demandante vai para o matrimônio não sabendo se o mesmo se realizaria. Estava confuso, não conseguindo perceber o que estava acontecendo. Não tinha a capacidade de ponderar e avaliar o passo que estava assumindo. Sua liberdade interna estava prejudicada, pois, embora tivesse quase a certeza que a Demandada não se casaria, tinha medo de suas consequências jurídicas, pois a Demandada poderia colocar contra ele algum tipo de processo por danos morais.

14. Tudo ponderado, após a invocação do Espírito do Senhor, os juízes do Tribunal Eclesiástico, chegaram à seguinte conclusão diante dos capítulos invocados:

1) Por grave falta de discrição de juízo (liberdade interna) por parte do Demandante (can. 1095, 2º): AFIRMATIVAMENTE.

2) Por simulação total por parte da Demandada (can. 1101, § 2): NEGATIVAMENTE.

A sentença afirmativa, proferida em Primeira Instância foi homologada, dois meses depois, pela Segunda Instância, declarando assim que as partes estão livres para contrair novas núpcias na Igreja, na esperança de que agora estejam mais conscientes e maduras para uma segunda chance.

sábado, 7 de novembro de 2009

Igreja doméstica, versus Igreja comunidade


Petronildo comparece em nossa secretaria paroquial e desabafa a sua história, contando que é batizado na Igreja católica e nela também recebeu os sacramentos de iniciação. Porém, em sua juventude matrimonial, resolveu frequentar por alguns anos o espiritismo. Lá, não encontrando o que buscava, voltou para a Igreja católica, depois de frequentar uma noitada do grupo de oração. Na medida em que se adentrou no grupo de oração, foi se sentindo cada vez mais próximo de Deus. Conta ele que acorda às três da madrugada para rezar o terço e não perde nenhuma pregação da Canção Nova. Deixou de beber nos finais de semana com os amigos. Não joga mais futebol. Não vai ao cinema e não sente nenhum prazer naqueles divertimentos do passado. Agora, a única coisa que causa alegria é rezar e assistir a Canção Nova. Porém, na medida em que se aprofundou na religião, foi aos poucos esvaziando de sentido a sua vida matrimonial. A esposa até ameaçou de atropelá-lo de casa. Os seus quatro filhos, nem sequer comemoraram o seu último aniversário. Como resultado disso, dormem ele e sua esposa em camas separadas. Um suporta o outro e não se conversam há muito tempo. Sua esposa frequenta a comunidade, mas não suporta o grupo de oração e, segundo ele, não é religiosa como ele gostaria que fosse. Diante deste fato, pergunta Petronildo: - O que eu devo fazer para salvar o meu matrimônio? Não seria melhor eu me separar dela, em vista da minha prática religiosa?

Estamos diante de um caso que merece uma análise sobre dois prismas, ou seja, a partir do prisma da Igreja doméstica e do prisma da Igreja comunidade.

Os documentos da Igreja rezam que a comunidade familiar é uma Igreja doméstica, sendo uma verdadeira escola onde nasce e se irradia a estabilidade e o destino de uma boa família e de uma boa sociedade. A Igreja doméstica é um grupo de pessoas, formado pelo casal e pelos filhos, construída sobre a rocha, com os alicerces da presença e da experiência de Deus. Assim, a Igreja doméstica é como se fosse a casa de Deus, a comunidade de pessoas unidas pelo matrimônio e pelos laços de sangue, como lugar privilegiado onde se vive uma comunhão no amor, na oração, no diálogo, na partilha de dons e na participação. Deste modo, o lar da família, que deriva de lareira (lugar do fogão, do calor), irradia do coração de cada membro e forma assim uma Igreja doméstica, na medida em que seus membros se sacrificam em prol do amor, que é transformado em sacramento da vida.

O casal, em virtude do sacramento do matrimônio, torna-se o espaço do testemunho do mistério de unidade, do amor fecundo entre Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 33). O amor, para que seja fecundo, deve ser na linha do amor conjugal, que já faz parte da fase preparatória ao matrimônio. O namoro e o noivado permitem o mútuo conhecimento das partes, para que o casal esteja habilitado a dar o seu sim para toda a vida, nos moldes do matrimônio cristão. Este amor passa pelas suas várias etapas, ou seja, a etapa da inclinação erótica, da amizade e da vida a dois, num processo de mútua doação. Esse amor, quando é bem cultivado, “envolve o bem de toda a pessoa; portanto é capaz de enobrecer as expressões do corpo e da alma como elementos e sinais específicos da amizade conjugal e de enriquecê-los com uma especial dignidade”(GS, 49). E quando é robustecido pela graça de Cristo, esse amor faz com que o casal desenvolva as mútuas potencialidades do respeito e da dignidade humana, presente e atuante na vida matrimonial. De outro lado, o amor conjugal vivido nessa dimensão, será estimado também pelo público, distinguindo os cônjuges cristãos pelo seu “testemunho de fidelidade e harmonia nesse amor e no cuidado pela educação dos filhos...”(GS, 49).

A Igreja comunidade é o templo, onde as pessoas se reúnem para colocar em prática os dons cultivados na família e, ao mesmo tempo, incrementarem a Igreja doméstica com os dons partilhados por todos. É o espaço da participação dos serviços e ministérios eclesiais, que faz com que todos formem o corpo místico de Cristo. Cada um ao seu modo, é um tijolo vivo na grande construção do reino de Deus, onde a Palavra de Deus é o húmus e a Eucaristia é o banquete de todos os valores celebrados comunitariamente.

Nos últimos anos, presenciamos no cenário da Igreja católica uma multiplicidade de modos de viver e celebrar as experiências religiosas comunitárias. Diga-se de passagem que não podemos mais falar de um jeito único de ser Igreja, mas sim de segmentos diferenciados. Há pessoas que se identificam com um modelo tradicional, onde a administração dos sacramentos e sacramentais ocupa o principal espaço, com homilias bem argumentadas, dízimo forte. Há pessoas que se identificam com as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), movimentos dos sem Terra, movimentos de trabalhadores e de classes operárias, encarcerados, círculos bíblicos. Há pessoas que se identificam com missas shows, que aglutinam multidões de pessoas ao redor de sacerdotes midiáticos. Há pessoas que se reúnem semanalmente nos grupos de orações para louvar, falar em línguas e participar de missas de cura e de libertação. Há pessoas que se identificam com sacerdotes que voltaram a celebrar em latim, de costas para o povo. Enfim, há uma diversidade de modos de celebrar, que nem sempre formam a Igreja querida por Cristo como a Igreja comunidade da aurora cristã. O mesmo poderíamos falar das pastorais e movimentos, que mais parecem gavetas separadas, como ilhas dentro de uma mesma paróquia ou comunidade de fé. Isso dificulta imensamente a integração das pessoas, num compromisso sério, que começa na Igreja doméstica e que culmina na Igreja comunidade. Aqui poderíamos ainda abordar o fenômeno da múltipla pertença religiosa, em que dentro de uma mesma família pode haver quatro ou cinco tradições religiosas diferenciadas. Porém, preferimos relegar isso a outro momento oportuno.

Voltando ao caso em epígrafe – depois de quase duas horas de conversa com Petronildo, em que ele derramou lágrimas, bloqueou a voz, puxou o terço do bolso e conseguiu retomar a sua fala – chegamos à conclusão de que há entre ele e sua esposa uma incompatibilidade religiosa interna, ou seja, a sua visão de Igreja doméstica e a sua visão de Igreja comunidade estão caminhando em desconformidade com a visão de Igreja da sua esposa. Exigir que ela mude de prática religiosa católica, será muito difícil. Até propus chamá-la para uma conversa. Porém, de nada adiantará, se for apenas para conformá-la à prática de Petronildo. Então, a única saída diante do fato é que ele empreenda um caminho de conversão um pouco mais aprofundado, onde a família possa ser o espaço sadio do cultivo dos valores humanos e cristãos e não apenas a sua visão de religião, desconectada do matrimônio. Por outro lado, o aconselhei a viver a vida em modo menos radical, voltando ao convívio dos amigos, à prática do esporte e, sobretudo, a se sentar junto com a esposa e os filhos e iniciar com eles um caminho de diálogo e de partilha de valores. Em outras palavras, que reze menos do seu jeito para rezar mais do jeito que se deve viver dentro da Igreja doméstica e dentro da Igreja comunidade. Caso contrário, a ruína do seu matrimônio está fadada a uma separação de fato e de direito, tendo como base a incompatibilidade religiosa num estado de pessoas que exige constantes renúncias em prol de toda a família. Para finalizar, desafiei o Petronildo a ser menos monge e a ser mais esposo. Assim sendo, seria possível integrar a Igreja doméstica à Igreja comunidade. E que a Sagrada Família ilumine o resgate de seu matrimônio!