terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Egoísta se casa e não dá certo


1. Reginaldo tinha 29 anos de idade quando começou o seu namoro com Priscila, que tinha 21 anos de idade. No ano seguinte noivaram e seis meses depois já estavam casados. A celebração foi muito bonita. Porém, na hora da recepção, os convidados já perceberam que Reginaldo se ausentou muitas vezes, com desculpas para atender as chamadas do celular. Na lua de mel, dormia o tempo todo, com pouco apetite para as relações sexuais. Nos dias seguintes, consumaram o matrimônio, com dificuldades, pois Reginaldo parecia distante, como se estivesse em outro mundo. Tiveram uma filha que foi educada pela mãe, uma vez que o pai sempre estava ocupado com o trabalho e suas coisas pessoais. Quando eram convidados para um ato social, o esposo resistia e quando fosse, preferia ficar em seu canto, longe de conversas e logo queria voltar pra casa. No lar, era viciado em internet e redes sociais. Não perdia um filme em sua TV por assinatura.

2. O relacionamento foi aos poucos esfriando e, depois de várias discussões e brigas, entre altos e baixos, este matrimônio durou apenas três anos e nove meses. Não percebendo possibilidades de reconciliação, Priscila sugeriu a separação, que depois foi convertida em divórcio. Um ano mais tarde, entrou no Tribunal Eclesiástico, suplicando a nulidade de seu matrimônio com Reginaldo. O Tribunal acolheu o seu súplice libelo, invocando os cânones relacionados à grave falta de discrição de juízo (can. 1095, 2º) e da incapacidade psíquica para assumir o matrimônio (can. 1095, 3º). Ambos os capítulos seriam aplicados ao esposo.

3. Para contrair núpcias na Igreja, não basta o suficiente uso da razão. É necessário que a pessoa apresente uma adequada maturidade psicológica. As pessoas afetadas pela falta de liberdade interna ou por grave falta de discrição de juízo não seriam capazes de contrair o matrimônio, porque não estariam em condições de julgar os direitos e deveres provenientes do mesmo.

4. As incapacidade psíquicas são defeitos em relação ao consentimento matrimonial, que alteram o equilíbrio das pessoas na hora de ponderar uma decisão ou ainda, para estabelecer um vínculo duradouro e estável. Podem ser anomalias, tais como a ninfomania, o sadismo, o masoquismo, a psicose, o alcoolismo crônico, a homossexualidade ou outros defeitos do ser humano, a serem vistos em cada caso. Tais defeitos rendem a pessoa incapaz de assumir as obrigações essenciais e próprias do matrimônio. O problema surge em confronto à necessidade de comprovar tais anomalias. Amiúde, essas anomalias podem ser julgadas somente por peritos. Nesse caso, o juiz eclesiástico, diante de uma causa de nulidade, pronuncia um juízo sobre a mesma, alegando-a perpétua ou sanável. Se é passível de um tratamento adequado, a anomalia não prejudica a vivência conjugal, permanecendo, todavia, válido o matrimônio. Caso contrário, é declarado nulo o matrimônio, depois de comprovados os seus motivos.

5. A pessoa egoísta conduz a sua vida em modo independente, sem pouco ou nenhum interesse pelo outro. Ela traça um plano de vida para si mesma, buscando sempre a satisfação de suas próprias necessidades, como se fosse uma ilha humana. Não consegue transcender o limite do próprio eu, em vista de um tu ou de um nós. Nos atos sociais, ou isola-se, ou chama a atenção para si mesma, como se não houvesse ninguém além dela. Se entrar para um grupo de amigos ou comunidade de fé, é egocêntrico, fazendo com que tudo gravite ao redor de sua própria vontade. Diante disso, se não se deixa trabalhar pela graça de Deus e pela ajuda de profissionais, dificilmente consegue conduzir uma vida matrimonial, justamente porque é privado do amor ao próximo, à esposa, ao filho, aos parentes, à comunidade.

6. O depoimento da esposa evidenciou que já no tempo do noivado Reginaldo era um tanto volúvel, sem iniciativas para nada além dos seus interesses. Era passivo, ególatra e muito vago em seu trabalho. Casar-se para ele significaria mudar de vida, porém, não conseguiu. Durante os dois primeiros anos de convivência, Priscila tinha que cuidar de tudo no lar, nas compras, nos cuidados com sua filha. Quando ia se pentear, ele ficava várias horas diante do espelho, como se fosse espelhando em sua própria imagem, narcisista. Só queria saber de jogar golfe e de ver televisão, além de muitas horas nos relacionamentos virtuais das redes sociais. Em resumo, não demonstrou capacidade para conduzir a vida a dois conforme as exigências do matrimônio.

7. Reginaldo colaborou no processo, comparecendo para depor. Em seu depoimento, negou muitas das afirmações que a esposa havia dito sobre ele. Porém, confirmou que desde pequeno foi muito mimado pela sua mãe, que lhe telefonava todos os dias e que sempre que possível a visitava. Também disse que tinha horror de festas de casamento, de aniversário, de comunidades e outros aglomerados de pessoas. Não gostava de crianças e pensava que a sua filha lhe traria outra compreensão, mas em vão. Segundo ele, se pudesse, estaria sempre consigo mesmo, curtindo os horizontes de sua própria personalidade, sem necessidade de pessoas ao seu redor. Concorda plenamente que seu matrimônio não existiu desde o início, porque não conseguiu superar as limitações, sendo o que sempre foi, desde a sua infância.

8. Das cinco testemunhas arroladas, somente três compareceram para enriquecer os autos do processo. O padrinho do casamento deixou claro que Reginaldo era e continua imaturo para a vida a dois, pelo fato de ser muito voltado para si mesmo, como se fosse uma ilha no meio da convivência humana. O mesmo ficou comprovado pela madrinha, quando diz que Reginaldo sofria de narcisismo exacerbado. Quando frequentava a piscina do casal, antes e depois do banho, ficava quase meia hora se olhando no espelho. Quando jogava golfe, não admitia que alguém risse dele. A gente nunca sabia o que pensava, pois não se deixava interpelar por ninguém. Sua mãe, como terceira testemunha, disse que seu filho é o único do lar e que sempre foi muito mimado por ela. Depois da separação, ele vive com ela. E segundo a genitora, não se relaciona com outras mulheres, nem com homens, com ninguém. Fica altas horas vendo filmes e nos relacionamentos virtuais da internet. Acorda tarde e quando volta do trabalho, não quer saber de conversa, nem de visitar ninguém. Disse também que ele nunca aceitou ajuda de ninguém, pelo fato de não ser doente. Aliás, nos últimos tempos da vida a dois, tiveram várias brigas, em que Reginaldo esbravejava, batia na filha e na esposa e depois se trancava no quarto, como se nada tivesse acontecido. No dia seguinte, sumia de casa e voltava somente aí pela meia noite, para não ser incomodado por ninguém. Segundo ela, Reginaldo nunca deveria ter casado.

9. Tendo em vista a maior clareza na certeza moral a ser proferida, foram solicitadas duas perícias sobre os autos do processo. Na primeira, o perito evidenciou que Reginaldo não padecia de uma anomalia grave. Porém, a sua personalidade era despreocupada com a esposa, com a filha, com os atos sociais. Ele não conseguiu superar o egoísmo de sua infância, nem antes e nem durante a vida matrimonial. Em sua personalidade egocêntrica, dificilmente se realizaria em outro matrimônio. Na segunda perícia, o perito chega à conclusão que Reginaldo era cercado de um contexto de baixa auto-estima, que nunca esteve seguro em seu matrimônio. Apresentou uma escala egocêntrica de valores, que não lhe permitia transcender na vida conjugal, além do seu próprio eu. Tudo gravitava ao redor de si mesmo.

10. Depois de tudo considerado, após invocarem o Espírito do Senhor, tanto o Colégio Judicante da Primeira Instância, quanto o Colégio Judicante da Segunda Instância chegaram à conclusão que este matrimônio foi nulo desde a sua raiz, porque não chegou a nascer e nem a crescer, porque foi afetado desde as suas origens pela incapacidade psíquica do esposo para a vida matrimonial (can. 1095, 3º).