sábado, 9 de abril de 2011

Violência doméstica e separação conjugal



Felisbino se casa na Igreja com Filomena, tem três filhas e vivem felizes por 20 anos. Na medida em que as filhas crescem, saem do doce lar vivido no interior de um sítio, à beira de um rio, para irem em busca de novos horizontes na cidade grande. Lá conseguem se formar e trabalhar. Com o sustento do trabalho, constroem o seu próprio lar e aos poucos vão esquecendo a vida de origem. Felisbino e Filomena continuam vivendo no doce lar do sítio, porém, com saudades das filhas, que não os visitam e nem telefonam. Um belo dia, Filomena, por um influência de uma das filhas, resolve abandonar o lar, contra a vontade de Felisbino e vai para junto das filhas. Cinco anos se passam e Felisbino, para não viver na solidão, resolve vender o sítio e se unir novamente à família. Na vida agitada da cidade, encontra resistências logo nos primeiros dias. Não tem a terra para plantar e ajardinar, nem o rio para pescar, nem as galinhas para cuidar. Então, começa a se embriagar, para esquecer um passado, construído com tanto empenho e dedicação. Um nefasto dia, chegando em casa, com forte cheiro de cachaça, é colocado pra fora do lar pela esposa e a filha. Dorme na área da área externa, num velho sofá cheio de pulgas, passando a noite ao relento de um gelado ar minuano. Três dias depois, a mesma cena. Revoltado com a situação, desencadeia a sua ira interior sobre Filomena, agredindo-a a coices e socos. Indefesa, a esposa cai e fere a sua cabeça, com cortes na testa e no braço direito. A cena é presenciada pelo neto, de 10 anos, que chama a mãe e resolvem na hora fazer um boletim de ocorrência. A seguir, colocam Felisbino para fora do lar, sem possibilidade de retorno.

O fato relatado revela a vida de milhares de pessoas, que apesar de casados, oficialmente na Igreja, nem sempre conseguem levar adiante a vida conjugal, de acordo com os compromissos assumidos no dia do consentimento. Diante disso, o que fazer?

As normas da Igreja sobre o sacramento, rezam que “o matrimônio ratificado e consumado não pode ser dissolvido por nenhuma causa, exceto a morte”(cânon 1141). No entanto, percebemos algumas possibilidades apresentadas nos cânones 1142 a 1150, como é o caso do adultério, que de fato pode levar a uma separação temporária ou permanente. O caso em tela, porém, é configurado na normativa do cânon 1153, que prevê a separação em casos de perigo para a convivência conjugal, com veremos a seguir.

As principais causas de separação conjugal, de acordo com o que reza cânon 1153, são as seguintes:
1) Grave perigo espiritual: a doutrina da Igreja entende que quando há perigo na vida espiritual de um dos cônjuges, o modo que se aconselha é a separação. Tal separação identifica-se como proteção da fé católica do cônjuge inocente e de sua prole. Este perigo existe, por exemplo, quando um cônjuge incita o outro, e seus filhos, de forma positiva, reiterada ou tácita, a cometer pecados graves ou empecilhos às suas obrigações religiosas;
2) Grave perigo corporal: isso ocorre quando há qualquer causa que seja um atentado à vida, à integridade física ou à saúde do cônjuge e de seus filhos. Neste caso, o Legislador tutela o direito da pessoa a dispor do que é necessário para bem conservar a sua integridade física e a de seus filhos. Exemplo: malícia de um dos cônjuges, quando atenta a vida do outro ou de seus filhos, com ameaças de morte ou golpes corporais. Também ocorre quando o culpado padece de uma grave enfermidade mental ou enfermidade contagiosa, ou ainda quando sofre de uma demência agressiva;
3) Grave dificuldade para a vida conjugal em comum: pode existir uma série de dificuldades que colocam em risco a vida comum do casal e de seus filhos. São as sevícias físicas e morais. As sevícias físicas envolvem condutas ou agressões contra o cônjuge ou seus bens materiais (socos, coices, golpes, arranhões, quebra de objetos no lar). As sevícias morais afetam o outro com palavras injuriosas, omissões, contra a dignidade, a honra e sentimentos, por difamação, insultos ou desprezo do outro. Em todo caso, a jurisprudência afirma que seja necessário que as sevícias sejam graves, reiteradas e que a separação seja o único modo para evitar o perigo da vida conjugal em comum.

Aplicando a normativa acima ao projeto de vida matrimonial, constatamos que a vida a dois exige o sacrifício, como parte integrante da aliança conjugal. No dia do consentimento, Felisbino e Filomena prometeram um ao outro a fidelidade, o amor, o respeito na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da vida. Constatamos também que o matrimônio é um vir a ser, que é lapidado no cotidiano, em que as partes não vivem apenas como se fossem ilhas, mas que um faça de tudo para que o outro seja feliz. Em outras palavras, o matrimônio traz no bojo a contínua renúncia, para que a felicidade do lar seja construída como a casa sobre a rocha. Porém, não se pode viver eternamente triste, separado e um sendo causa de violência para o outro, como no caso em tela. Percebemos que este matrimônio foi cultivado no jardim dos dois e dos filhos, durante anos. Mas na medida em que os horizontes se abriram para os filhos, obstruíram, aos poucos, os canais da felicidade do casal, porque os filhos não reconheceram a sua origem. Filomena poderia muito bem ter voltado ao esposo, mas preferiu seguir a vontade das filhas, somente porque isso trazia o “conforto e o bem estar da cidade”. E se Felisbino batesse o pé em permanecer em seu doce lar do sítio, construído com o suor de seu rosto, estaria encetando viver o resto de seus dias na solidão. E ainda, se houvesse o perdão da parte de Filomena - o que seria muito difícil, uma vez que fizeram até o boletim de ocorrência diante do fato da violência no lar - mesmo assim os cacos poderiam ser juntados, ajustados e a convivência conjugal, restabelecida. Porém, isso não aconteceu e somente um milagre de Deus poderia favorecer os canais do perdão e da reconciliação.

Diante do exposto, a saída é a separação temporária do casal. O Bispo pode conceder isto, por decreto (cânon 1153), mediante ilustrada justificativa. E se um dia houver a reconciliação, o casal poderá retornar à convivência conjugal. Caso contrário, existe ainda a saída do processo de nulidade deste matrimônio, contemplado nos cânones 1671 a 1706.

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