sábado, 1 de outubro de 2011

Ex religioso faz greve de fome e quer seus bens de volta


Fabrício, com 50 anos de idade, encanta-se pela vida religiosa consagrada e deseja ser frade menor. Faz alguns encontros de preparação vocacional e a seguir, as etapas preparatórias ao noviciado (tempo de prova). Antes de sua primeira profissão, motivado pelo espírito de pobreza, doa à fraternidade um caminhão, algumas caixas de ferramentas (era mecânico) e uma pequena soma em dinheiro. Segue o itinerário de seus estudos filosóficos e, quando pensa que estava maduro para fazer a sua profissão perpétua, não é aprovado pelo corpo de formadores e nem pelo conselho da Província. É transferido para outra fraternidade, onde não se encaixa na mesma, por motivos de contínua insatisfação com os princípios da vida religiosa consagrada. Tem sérios conflitos com a fraternidade e acaba sendo dispensado da vida religiosa consagrada, enquanto professo temporário. Tenta entrar em outra Província, mas não é aceito. Então, resolve processar a Província onde entrou, alegando que lhe doou os seus bens, que trabalhou nela e nada recebeu pelos serviços prestados. A sua demanda é julgada como improcedente. Porém, insatisfeito diante disso, inicia uma greve de fome, distribuindo inclusive um manifesto contra a Província, onde alega que foi dispensado e dela nada recebeu. Também alega uma ação na justiça por falsidade ideológica, dano moral e responsabiliza a Província por danos à sua saúde, caso não seja atendido em seus anseios.

A resposta à questão em tela será impostada nas normas da Igreja (Direito Canônico), com alguns acenos ao Direito Civil.

1. A espinhosa questão dos bens temporais de todo e qualquer cidadão cristão, sobretudo católico, entra na esfera dos conselhos evangélicos, especialmente no voto de pobreza. Tal voto emerge do princípio fundamental da vida religiosa consagrada, que é a renúncia de tudo aquilo que cria obstáculos ao seguimento de Cristo pobre e crucificado. Na tentativa de seguir as suas pegadas, a vida consagrada formatou os conselhos evangélicos, na exigência e obrigação dos votos. Para seguir o exemplo de Cristo e seus seguidores, o religioso consagrado aceita essa proposta, que requer dele também a renúncia à posse dos bens temporais.

2. O primeiro parágrafo do cânon 668 reza que o “os noviços, antes da primeira profissão, cedam a administração de seus bens a quem preferirem”. Essa exortação se faz necessária, para que o noviço possa, na sua plena liberdade interior, liberar-se de todas as propriedades e posses de bens temporais, sobretudo no que concerne à sua administração. O tempo de noviciado é um estágio inicial, tendo em vista a futura profissão perpétua. Para tanto, é um treinamento em vista do compromisso posterior. No entanto, não significa que o noviço esteja renunciando a esses bens. A Igreja é muito prudente, tendo em vista a experiência cristalizada em todos os tempos, que muitos noviços desistem da vida consagrada, e ao sair do instituto, possam continuar em plena posse de tais bens. Portanto, não está em questão a renúncia dos bens patrimoniais, mas a cessão da administração dos mesmos, que permanecem com pessoas de sua confiança até a renúncia definitiva desses bens.

3. É comum nos institutos de vida consagrada, solicitar do noviço um testamento por escrito, cujo documento ateste a cessão da administração de seus bens temporais a outrem. A administração, em geral, é confiada aos membros de sua família: pais, irmãos, primos ou até a outras pessoas, quando o noviço não tem outra alternativa. Porém, o Código de Direito Canônico exorta, para esse testamento “seja válido também no direito civil”(can. 668, § 1).

4. O Código de Direito Civil legisla sobre três tipos de testamento, ou seja, o testamento público, o testamento cerrado e o testamento particular (Art. 1862). Salvo melhor juízo, a matéria em foco entra na normativa do testamento público, que para ser válido, deve ser escrito por tabelião e assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião”(Art. 1864). Em se tratando do seu caráter temporário (votos simples), não se recomenda aos institutos enfrentar toda essa burocracia no noviciado. Bastaria um atestado simples, assinado pelo testador, com firma registrada, e duas testemunhas. No entanto, diante da profissão perpétua de seus membros, todos deveriam fazê-lo, considerando a distância que há entre a legislação canônica e a legislação civil. Para o Estado, as coisas devem estar objetivamente documentadas e registradas em cartório, caso contrário, de nada valem.

5. O parágrafo quinto do cânon 668 afirma ainda que o religioso que renuncia plenamente a seus bens, renuncia também à capacidade de adquirir e de possuir tais bens. Essa renúncia é estipulada no testamento. A normativa se faz necessária, porque um religioso poderia muito bem renunciar aos bens temporais que possui no momento de sua profissão e não renunciar à capacidade futura. É o caso da herança, por exemplo, que ele poderia adquirir de um parente seu, posterior à profissão perpétua no instituto.

6. Outra questão que merece ser recordada é o trabalho efetivo do religioso dentro da instituição, sejam eles encarados como serviços domésticos, sejam eles em paróquias, creches, escolas, colégios, faculdades. Antes de tudo, faz-se mister distinguir se tal entidade é parte integrante da pessoa jurídica do religioso, ou outra entidade. Se o trabalho é configurado na esfera da entidade do religioso, ocorre verificar nesse caso se o seu estatuto social permite o pagamento, segundo as leis trabalhistas, aos seus membros. Se o direito próprio do instituto permite que o trabalho possa ser remunerado, o fruto da percepção entra no caixa comum da mantenedora. Caso contrário, o religioso não pode reivindicar direitos trabalhistas por seu serviço prestado.

7. Ao garimpar uma resposta diante da entidade de Fabrício, constatamos que o direito próprio da Província (Estatuto Social), reconhecido em Cartório, afirma que: Os sócios temporários, desde sua admissão na Província, deverão responder aos seguintes deveres: [...] reconhecer que o trabalho assistencial prestado é de exclusivo caráter voluntário, e por conseqüência, não há “animus” na prestação de serviços, inexistindo qualquer direito trabalhista (Estatutos Sociais, art. 11, IV). Em base a este dispositivo, o caso de Fabrício foi julgado em primeira instância, como improcedente.

8. A doação dos seus bens à Província poderia ter sido recusada. De fato, não se aconselha nenhuma entidade a receber bens, que porventura possam gerar expectativa de vínculo com a mesma, especialmente de um professo temporário. A primeira profissão religiosa é como se fosse um tempo de noivado, em que as partes ainda não deram uma a outra o seu consentimento. Porém, Fabrício era livre. Os seus bens poderiam ter sido doados, ou para seus familiares, ou para quem ele intencionasse naquele momento. Portanto, se foram doados à entidade religiosa, como doação sem reserva, isso não lhe garantiria que se não fosse aprovado para a entrada definitiva na Província, que pudesse reavê-los.

9. No nosso modo de entender, Fabrício não tem direito a reclamar ressarcimento, nem pelos serviços prestados, nem a continuar acusando a Província por falsidade ideológica, dano moral e ou danos à sua saúde. Na época de sua entrada para a vida religiosa consagrada, ele conhecia as regras de sua associação e, como sócio temporário, se não conseguiu cumpri-las, também não estava apto para ser sócio permanente da mesma. E se hoje ele resolve fazer greve de fome, não é a entidade religiosa que vai assumir os riscos de sua saúde, uma vez que ele não pertence mais à Província. Portanto, salvo melhor juízo, a melhor saída diante da situação seria um acordo, que previsse a devolução do valor equivalente aos bens da época, tendo em vista o entendimento possível entre as partes no melhor deslinde da questão.

Um comentário:

Anônimo disse...

Como sempre muito abrangente o Frei Muller. Nao sei se o frei ja menciou este tema no blog, mas gostaria de saber a posiçao da igreja sobre algum que ja frequentou o noviciado, mas se afastou da vida religiosa, contraiu matrimonio, e agora caiu em si, e sente que a sua felicidade e realizaçao pessoal esta na vida religiosa consagrada. Levando em conta o historico dessta pessoa e o fato de nao ter filhos, poderia ser reintegrada na vida religiosa????
Complicada a historia, entretanto, real