sábado, 7 de novembro de 2009

Igreja doméstica, versus Igreja comunidade


Petronildo comparece em nossa secretaria paroquial e desabafa a sua história, contando que é batizado na Igreja católica e nela também recebeu os sacramentos de iniciação. Porém, em sua juventude matrimonial, resolveu frequentar por alguns anos o espiritismo. Lá, não encontrando o que buscava, voltou para a Igreja católica, depois de frequentar uma noitada do grupo de oração. Na medida em que se adentrou no grupo de oração, foi se sentindo cada vez mais próximo de Deus. Conta ele que acorda às três da madrugada para rezar o terço e não perde nenhuma pregação da Canção Nova. Deixou de beber nos finais de semana com os amigos. Não joga mais futebol. Não vai ao cinema e não sente nenhum prazer naqueles divertimentos do passado. Agora, a única coisa que causa alegria é rezar e assistir a Canção Nova. Porém, na medida em que se aprofundou na religião, foi aos poucos esvaziando de sentido a sua vida matrimonial. A esposa até ameaçou de atropelá-lo de casa. Os seus quatro filhos, nem sequer comemoraram o seu último aniversário. Como resultado disso, dormem ele e sua esposa em camas separadas. Um suporta o outro e não se conversam há muito tempo. Sua esposa frequenta a comunidade, mas não suporta o grupo de oração e, segundo ele, não é religiosa como ele gostaria que fosse. Diante deste fato, pergunta Petronildo: - O que eu devo fazer para salvar o meu matrimônio? Não seria melhor eu me separar dela, em vista da minha prática religiosa?

Estamos diante de um caso que merece uma análise sobre dois prismas, ou seja, a partir do prisma da Igreja doméstica e do prisma da Igreja comunidade.

Os documentos da Igreja rezam que a comunidade familiar é uma Igreja doméstica, sendo uma verdadeira escola onde nasce e se irradia a estabilidade e o destino de uma boa família e de uma boa sociedade. A Igreja doméstica é um grupo de pessoas, formado pelo casal e pelos filhos, construída sobre a rocha, com os alicerces da presença e da experiência de Deus. Assim, a Igreja doméstica é como se fosse a casa de Deus, a comunidade de pessoas unidas pelo matrimônio e pelos laços de sangue, como lugar privilegiado onde se vive uma comunhão no amor, na oração, no diálogo, na partilha de dons e na participação. Deste modo, o lar da família, que deriva de lareira (lugar do fogão, do calor), irradia do coração de cada membro e forma assim uma Igreja doméstica, na medida em que seus membros se sacrificam em prol do amor, que é transformado em sacramento da vida.

O casal, em virtude do sacramento do matrimônio, torna-se o espaço do testemunho do mistério de unidade, do amor fecundo entre Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 33). O amor, para que seja fecundo, deve ser na linha do amor conjugal, que já faz parte da fase preparatória ao matrimônio. O namoro e o noivado permitem o mútuo conhecimento das partes, para que o casal esteja habilitado a dar o seu sim para toda a vida, nos moldes do matrimônio cristão. Este amor passa pelas suas várias etapas, ou seja, a etapa da inclinação erótica, da amizade e da vida a dois, num processo de mútua doação. Esse amor, quando é bem cultivado, “envolve o bem de toda a pessoa; portanto é capaz de enobrecer as expressões do corpo e da alma como elementos e sinais específicos da amizade conjugal e de enriquecê-los com uma especial dignidade”(GS, 49). E quando é robustecido pela graça de Cristo, esse amor faz com que o casal desenvolva as mútuas potencialidades do respeito e da dignidade humana, presente e atuante na vida matrimonial. De outro lado, o amor conjugal vivido nessa dimensão, será estimado também pelo público, distinguindo os cônjuges cristãos pelo seu “testemunho de fidelidade e harmonia nesse amor e no cuidado pela educação dos filhos...”(GS, 49).

A Igreja comunidade é o templo, onde as pessoas se reúnem para colocar em prática os dons cultivados na família e, ao mesmo tempo, incrementarem a Igreja doméstica com os dons partilhados por todos. É o espaço da participação dos serviços e ministérios eclesiais, que faz com que todos formem o corpo místico de Cristo. Cada um ao seu modo, é um tijolo vivo na grande construção do reino de Deus, onde a Palavra de Deus é o húmus e a Eucaristia é o banquete de todos os valores celebrados comunitariamente.

Nos últimos anos, presenciamos no cenário da Igreja católica uma multiplicidade de modos de viver e celebrar as experiências religiosas comunitárias. Diga-se de passagem que não podemos mais falar de um jeito único de ser Igreja, mas sim de segmentos diferenciados. Há pessoas que se identificam com um modelo tradicional, onde a administração dos sacramentos e sacramentais ocupa o principal espaço, com homilias bem argumentadas, dízimo forte. Há pessoas que se identificam com as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), movimentos dos sem Terra, movimentos de trabalhadores e de classes operárias, encarcerados, círculos bíblicos. Há pessoas que se identificam com missas shows, que aglutinam multidões de pessoas ao redor de sacerdotes midiáticos. Há pessoas que se reúnem semanalmente nos grupos de orações para louvar, falar em línguas e participar de missas de cura e de libertação. Há pessoas que se identificam com sacerdotes que voltaram a celebrar em latim, de costas para o povo. Enfim, há uma diversidade de modos de celebrar, que nem sempre formam a Igreja querida por Cristo como a Igreja comunidade da aurora cristã. O mesmo poderíamos falar das pastorais e movimentos, que mais parecem gavetas separadas, como ilhas dentro de uma mesma paróquia ou comunidade de fé. Isso dificulta imensamente a integração das pessoas, num compromisso sério, que começa na Igreja doméstica e que culmina na Igreja comunidade. Aqui poderíamos ainda abordar o fenômeno da múltipla pertença religiosa, em que dentro de uma mesma família pode haver quatro ou cinco tradições religiosas diferenciadas. Porém, preferimos relegar isso a outro momento oportuno.

Voltando ao caso em epígrafe – depois de quase duas horas de conversa com Petronildo, em que ele derramou lágrimas, bloqueou a voz, puxou o terço do bolso e conseguiu retomar a sua fala – chegamos à conclusão de que há entre ele e sua esposa uma incompatibilidade religiosa interna, ou seja, a sua visão de Igreja doméstica e a sua visão de Igreja comunidade estão caminhando em desconformidade com a visão de Igreja da sua esposa. Exigir que ela mude de prática religiosa católica, será muito difícil. Até propus chamá-la para uma conversa. Porém, de nada adiantará, se for apenas para conformá-la à prática de Petronildo. Então, a única saída diante do fato é que ele empreenda um caminho de conversão um pouco mais aprofundado, onde a família possa ser o espaço sadio do cultivo dos valores humanos e cristãos e não apenas a sua visão de religião, desconectada do matrimônio. Por outro lado, o aconselhei a viver a vida em modo menos radical, voltando ao convívio dos amigos, à prática do esporte e, sobretudo, a se sentar junto com a esposa e os filhos e iniciar com eles um caminho de diálogo e de partilha de valores. Em outras palavras, que reze menos do seu jeito para rezar mais do jeito que se deve viver dentro da Igreja doméstica e dentro da Igreja comunidade. Caso contrário, a ruína do seu matrimônio está fadada a uma separação de fato e de direito, tendo como base a incompatibilidade religiosa num estado de pessoas que exige constantes renúncias em prol de toda a família. Para finalizar, desafiei o Petronildo a ser menos monge e a ser mais esposo. Assim sendo, seria possível integrar a Igreja doméstica à Igreja comunidade. E que a Sagrada Família ilumine o resgate de seu matrimônio!

2 comentários:

Anônimo disse...

Frei Ivo,

parabéns por toda a análise do senhor. Realidade bem próxima de todos nós é o caso citado. Vemos muito isto e similares. Na minha opinião a Igreja Comunidade não pode ser alienante e até mesmo "destruidora" da Igreja Doméstica e das circunstâncias comuns da vida. Devemos viver a Igreja no nosso cotidiano de pessoas humanas, reflexos de Deus.

Sua Bênção.
Denise.

Anônimo disse...

Penso que seria o caso de se perguntar se a raiz do proclema está não na Canção Nova (que não me parece estimular esse tipo de comportamento), mas na realidade da vida doméstica desse senhor. Muitas vezes uma pessoa pode buscar na religião um tipo de integração que não consegue na família. Às vezes uma pessoa pode se sentir mais acolhida e mais respeitada dentro de um movimento, uma pastoral, um grupo de oração ou na comunidade paroquial do que em casa, tendo de lidar com pais prepotentes ou com um cônjuge aborrecido. Muitas vezes se ouve argumentos do tipo "A RCC (ou o Opus Dei, ou o Neocatecumenato, ou o outro movimento)destrói as famílias", dito nem sempre com boas intenções, por gente da extrema esquerda (que quer desmoralizar a Igreja) ou da extrema direita (tradicionalistas que pensam que todo catolicismo deve se submeter ao modelo da FSSPX). Mas em muitos casos ocorre é que as famílias já estão se autodestruindo por si mesmas. Talvez se essas pessoas não buscassem consolo na religião, acabariam procurando por ele na bebida, no adultério, nas drogas, na sexualidade desenfreada ou mesmo no trabalho compulsivo (quantas pessoas não ficam até de madrugada no escritório, talvez menos por ganância ou por medo de perder o emprego, mas para evitar sua família?). E certamente seriam menos criticadas por isso do que se tornando um "carola".
Sua Benção.
Pedro